Dublin 5/01/14
Um caminhão, carregado de pedras
estava passando pela minha cabeça nos últimos dias, ou será que carregava as
pedras que antes carregava eu, e que de
saída havia decidido passar pela minha cabeça para lembrar-me do que acumulei.
Não sei, mas era essa a minha sensação ao acordar no dia 05 de janeiro de 2014
na casa de minha amiga Bruna em Dublin.
Poucas horas dormidas e uma
chuvinha fina na rua daquelas que convida a ficar dormindo. Mas eu tinha um
compromisso de cantar junto ao meu coro na Igreja Christ Church no coração de
Dublin.
Lá fui eu, pus a primeira calça jeans que vi pela frente,
uma blusa vermelha de lãzinha fina e meu super casaco preparado para o clima de
inverno da minha querida Dublin.
Esse coro a que me refiro, é o
Coro Voluntário da Christ Church, um coro de canto lírico onde cantamos obras
de Batten, Stanford entre outros compositores do séc: XVI. Algumas peças são
inclusive em Inglês Arcaico com palavras que não se usam mais. Isso me explicou
uma senhora da Inglaterra, colega do coro, que também me contou a história
desse período histórico a que nos referíamos, as reformas na igreja e na
língua, etc. Quando terminou o relato eu tinha um sorriso de orelha a orelha
por tê-la entendido claramente, ao que ela me respondeu – Sim claro, articulei
bem as palavras. Com aquele acento britânico característico.
Quando subi na sala em que
ensaiamos (uma sala lindíssima no segundo andar da Igreja com um piano de cauda
no centro e uma acústica fabulosa) tive minha primeira surpresa: todos estavam
com trajes de festa, e isso tudo era de manhã. Os homens de terno e gravata e
as mulheres de saia preta e blusas arrumadas e brilhosas. E eu de calça jeans.
Perguntei a Martina, a moça que toca o piano se podia cantar vestida assim e
ela perguntou ao maestro que prontamente respondeu que claro e assim me juntei
aos cantores no aquecimento da voz.
Quando foi a hora de descer para
a Igreja eu ainda sentia um desconforto pela minha roupa e fiquei esperando
todos saírem primeiro para perguntar de novo para a senhora (aquela de boa
articulação) me explicar se seria um insulto eu cantar na missa com aquela
roupa. Desta vez ela não foi tão paciente e não entendendo a minha pergunta
saiu apressada.
Desci então e meio que me perdi
nos labirintos da Igreja até encontrar o padre (esse eu reconheci pela roupa)
que com um amistoso e acolhedor sorriso me perguntou – É sua primeira vez por
aqui?. Expliquei que sim que estava com o coro e ele me conduziu aos púlpitos
laterais onde ficaríamos para cantar.
Mesmo que eu ainda estivesse meio
incomoda pela minha vestimenta, o sorriso do padre me acalmou e quando entrei
no meu lugar vi que minhas outras colegas haviam guardado meu espaço e esperavam
por mim (acredito agora que talvez elas nem tenham reparado na minha roupa e
que se reparam me deram o “desconto” que
toda a juventude e todo estrangeiro ganham por não conhecer os costumes
locais).
E ai começou a magia, quando o
primeiro acorde do grande órgão da igreja ressoou nos meus ouvidos e na minha
alma. Ensaiamos algumas das músicas, e eu já sentia uma atmosfera diferente no
ar. Os ajudantes do padre enchiam a Igreja de incenso e eu ia sentindo minha
consciência se elevando conforme soltava minha voz e abria meu coração.
A Christ Church é uma Igreja estilo
gótico (e antes de reformada era uma Igreja viking) do séc: XI, de orientação ,
e a missa lá é como voltar no tempo. O sermão do padre é num púlpito ao lado da
Igreja, (e foi tão acolhedor quanto o sorriso do próprio. Ele falou de sermos
as crianças de Deus, e essa consciência de ver-me tão pequena e amparada foi me
dando uma sensação de conforto e pertencimento), o padre e os seus ajudantes
caminham por toda a Igreja com bastões rituais e incensos aromáticos, e na
consagração compartilham com toda a comunidade tanto a hóstia quanto o vinho.
Ironia do destino ou não eu fui a segunda a comungar, com minha calça jeans,
diante a toda a Igreja recebendo outro sorriso acolhedor do padre.
“-Blessed is He, that comes, that comes in the name of the Lord,”
E meu coração se inundava de música, magia e
principalmente de paz. A paz de saber-me imperfeita, de saber-me aprendiz. A
paz de compreender que tudo é necessário no crescimento e que somente tendo
vivido conseguimos entender o porquê das experiências.
Nesse momento tudo, absolutamente todo fez um
sentido completo da perfeição do plano de Deus. Eu entendi no fundo de mim que
não havia um segundo da minha vida que poderia ter sido diferente. Entendi que
até o que eu considero meus erros serviu para me ensinar, e que todos os
aprendizados culminavam naquele momento de fé, cantando em louvor a Deus, mãe e
pai que está em nós em cada pedacinho de nós e de tudo. Uma sensação de
gratidão, de amor e fé me inundou. Uma euforia calma (é possível isso?)
impossível de escrever em palavras. Ao mesmo tempo em que me senti cheia de
vida, me senti em repouso, entregue, sabendo que minhas ações estavam amparadas
pela vontade divina e que eu podia relaxar e entregar, qual um nenê se entrega
ao sono em plena confiança na mãe que o sustenta e protege. Vivi como que uma
retrospectiva dessa minha vida, desde a minha infância até esse momento, e ao
fim senti o aconchego de chegar onde cheguei e de saber-me nas mãos dele/ dela
que não tem gênero e permeia tudo, guarda por tudo e tem um amor infinito por
tudo.
Uma senhora de cabelos brancos
soltos até a cintura foi no púlpito ler o Evangelho e de novo senti aquela
sensação de casa. Como se todos os erros da humanidade do passado estivessem
purificados naquele momento. Senti perdão por todas nós mulheres que sofremos
muito pela ignorância da Igreja, dos homens e de nós mesmas. Senti gratidão
pelas que nos precederam e que transmitiram como puderam o incondicional amor
de mãe, o mais próximo do divino que há, nunca deixando morrer o selvagem,
belo, misterioso e profundo conhecimento feminino. Senti perdão pelos homens que carregaram por
tanto tempo o peso da opressão e da guerra passado de geração a geração. Senti
gratidão por todos os homens que conseguiram ir alem dessa sina e foram bons
pais, bons companheiros, cheios de paz e
amor no coração Senti gratidão e pedi
perdão por toda essa imperfeição que faz de nós tão humanos e tão frágeis.
E a todas essas já não controlava
minha voz que subia como canto de pássaro. Já não precisava pensar nas palavras
pois elas vinham e faziam sentido na linguagem universal do amor.
Terminada a missa, me senti
forte, completa, segura nas minhas decisões, amparada de saber que nunca
estarei sozinha e que estou sempre sendo conduzida pelo melhor caminho, sempre
nos braços deles mãe – pai Deus.
Olhando para as cadeiras da
Igreja reconheço Bruna minha amiga.
Tamanho amparo e sabedoria flui dessa menina de 23 anos cheia de vida e
verdade. Como sou grata a essa amiga, que
se mostrou uma fortaleza de proteção nesse momento em que me vi tão frágil.
Vê-la lá e saber que mesmo sem saber ela vivenciou um dos momentos de maior
conexão que já vivi na vida, foi mais um
presente desse Deus vivo que preenche a todos
nós.
Na saída fui me despedir do maestro, que me agradeceu
muito e disse – Hoje foi especial para você né? Que bom que desfrutastes!. Só consegui rir em resposta antes de tentar
explicar que foi minha primeira missa em Inglês. Como falar missa em Inglês?
Pouco importa as palavras nesse momento e em que idioma saem, acredito que ele entendeu e após abraços de despedida
fomos eu e Bruna de braço dado para fora da Igreja.
Na rua o vento soprava bênçãos em
nossos ouvidos, o sol tinha aparecido
para inundar-nos com sua luz e as belas arvores que circulam a Christ Church
lembravam-nos que Deus habita toda a criação. Caminhamos em um cúmplice silêncio,
preenchidas de amor e paz, e reconhecendo a vontade divina em todo imperfeito
perfeito acontecimento.